Um domingo fatídico

O dia nublado veio acompanhado de uma ventania cortante e chuva fina. Era um desses dias de caráter controverso: bom para tomar um chocolate quente olhando a chuva cair através da janela, ao mesmo tempo que parecia melancólico demais para ficar em casa.

Estava decidido: seria mais interessante sair, mesmo com toda aquela chuva. Sem duvida não era o melhor dia para ir ao parque ou caminhar pelas ruas, mas talvez fosse o dia perfeito para comer algo delicioso no shopping, e foi o que fizemos.

Por voltas das 17 horas, todas as lojas começaram desligar as luzes e fechar as portas. É hora de ir para casa. Aos poucos as pessoas iam deixando badaladíssimo shopping que agora, sem luzes, parece um manicômio assombrado.

Dentro do metrô, eu observava as pessoas. O casal de idosos calados em uma postura contemplativa, o grupo de três garotas que voltavam animadas das compras no shopping, o bebê com olhar curioso no colo da mãe. A vida seguia seu curso como de hábito. Pedro disse:

– Eu queria conhecer o outro lado do Canadá, dizem que é muito bonito. – Disse Pedro.

– Seria bom. Se você continuar no trabalho e eu conseguir um estagio nesse verão, podemos…

Um supetão ameaçou nos jogar longe e tivemos que nos segurar firme na barra vertical do metrô. Alguns gritos se confundiam com o som do ferro contra ferro que foi produzido por aquela freada brusca. Eu serrei os olhos de agonia. O casal de idosos parecia cair em câmera lenta do banco. As garotas com sacolas de compras estavam agora assustadas. Eu e Pedro nos olhávamos como quem pergunta “Está tudo bem?”. Aqueles breves segundos pareceram se estender no tempo, como um curto pedaço de elástico que é amplamente distendido.

Tranquilidade restabelecida, um senhor se levantou e tentou abrir a porta do veiculo em um gesto quase instintivo. Ouviu-se um chiado rápido, as luzes se apagaram imediatamente.

Cochichos, vozes, confusão e uma longa espera.

– Já pensou vem outro metrô e bate no nosso? – Disse Pedro.

– Pedro, eu acho que alguém se jogou nos trilhos.

suicidio no metrô

 

Análise da música Pais e Filho (Legião Urbana)

Composta por uma melodia doce e nostálgica, além de versos que aparentemente não possuem nenhuma conexão, Pais e Filhos narra um drama bastante tocante.

suicídio

Muito de nós já cantamos essa belíssima canção sem nos dar conta de sua mensagem. Isso deve-se em grande parte ao fato de sua melodia doce e nostálgica esconder o peso de seus versos. A música gira em torno de um tragédia que a maioria toma por uma metáfora, já que por ser tão músico quanto poeta, Renato Russo costumava recitar suas letras em tom misterioso.

Mas desta vez a frase “Ela se jogou da janela do quinto andar” quer dizer exatamente isso mesmo. Pais e Filhos aborda suicídio, relacionamentos conflituosos, amizade e ainda nos sugere refletir sobre o comportamento de nossos pais e, quem sabe, entendê-los.

Vem comigo revirar verso por verso?

Pais e Filhos – Legião Urbana

Estátuas e cofres e paredes pintadas
Ninguém sabe o que aconteceu
Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender

Renato usa um recurso muito comum entre escritores para iniciar sua música: começar a história pelo final. Eis a cena inicial deste “filme”: a câmera mostra o ambiente que a moça vive “Estátuas e cofres e paredes pintadas”. Dependendo da imagem que construirmos do lugar em nossas mentes, essa cena pode insinuar um ambiente perfeitamente normal, com paredes pintadas e limpas, além de cofres e estátuas, o que acaba por revelar que a protagonista desse drama tinha apego material e fazia planos para o futuro. Pode-se presumir, com isso, que a personagem não vivia nenhum terrível drama particular e levava uma vida normal, portanto “Ninguém sabe o que aconteceu“, sabe-se apenas que “Ela se jogou da janela do quinto andar”, mas alheios ao que se passava em seu interior, ninguém entende o que a levou a isso: “Nada é fácil de entender”. 

Dorme agora
É só o vento lá fora

Quero colo! Vou fugir de casa
Posso dormir aqui com vocês?
Estou com medo, tive um pesadelo
Só vou voltar depois das três

Meu filho vai ter nome de santo
Quero o nome mais bonito

Aqui Renato quebra a história para recitar trechos de diálogos comuns entre pais e filhos. Começando pelo verso “Dorme agora/É só o vento lá fora”. Frase que vem ilustrar muito bem como os pais tranquilizam os filhos nas noites de terror vivenciadas na infância, seja por medo do escuro, do bicho papão, paranoias ou sofrimentos adventos de perdas.

Os diálogos permanecem no centro da trama, quando versos que evidenciam diferentes fases da vida são atirados na letra.

  • Como filhos que ainda são crianças: “Quero colo!/Vou fugir de casa/Posso dormir aqui com vocês?/Estou com medo, tive um pesadelo” –  e os pais são o centro de seu universo e fonte de amor e proteção infinita. Fase em que tamanha dependência faz o mundo sem os pais parecer algo inimaginável.
  • Como filhos que já são jovens: “Só vou voltar depois das três” – envoltos em rebeldia, crítica e incompreensão. A fase da adolescência é certamente o momento em que são questionadas as escolhas dos pais e geralmente conclui-se que eles poderiam ter se saído melhores em tudo.
  • E como pais que sonham em dar o seu melhor para os filhos: “Meu filho vai ter nome de santo/Quero o nome mais bonito”.

Fazendo uso desses versos, Renato leva-nos a uma aproximação e consequente empatia pela relação pais x filhos. Todos que são filhos e pais podem se identificar com a estrofe. Funciona como uma generalização realista e comum a todos.

É preciso amar as pessoas
Como se não houvesse amanhã
Porque se você parar pra pensar
Na verdade não há

É justamente essa generalização o gatilho para Renato deixar subentendido que essa fases são normais, todos passamos por elas. E que durante um intervalo de tempo filhos terão os pais como heróis e centro de seu universo. Depois verão seus pais com um olhar bastante crítico quando jovens. Mas por fim entenderão seus pais quando tiverem filhos.

Então, aconteça o que acontecer, ame-os como se não houvesse amanhã. Pois não importa a fase, a briga, a incompreensão, o desentendimento, a crítica… o amor tem que estar presente nessa relação. Além do mais, conflitos não devem estender-se no tempo, já que para seres humanos ele é limitado ou até curto demais as vezes. Então, ame “Como se não houvesse amanhã/Porque se você parar pra pensar/Na verdade não há”.

Me diz, por que que o céu é azul?
Explica a grande fúria do mundo
São meus filhos
Que tomam conta de mim

Eu moro com a minha mãe
Mas meu pai vem me visitar
Eu moro na rua, não tenho ninguém
Eu moro em qualquer lugar

Já morei em tanta casa
Que nem me lembro mais
Eu moro com os meus pais

Renato sai do papel de conselheiro e volta para nos trazer mais detalhes dessas relações e aborda questões triviais para os pais e também para os filhos. Logo questionamentos da infância que mesmo na velhice jamais puderam ser desvendados são colocados em pauta “Me diz, por que que o céu é azul?/Explica a grande fúria do mundo”.

Condições de relações diversas também são alvos de Renato Russo, que incorpora à música diálogos de personagens, ora porque são pais que recebem os cuidados dos filhos na velhice (cuidado), ora porque são filhos que sequer sabem quem são seus pais (abandono). Filhos que moram com os pais (presença) e filhos que moram em qualquer lugar (ausência). Eis o grande mistério do parágrafo: trata-se de um jogo de antíteses.

É preciso amar as pessoas
Como se não houvesse amanhã
Porque se você parar pra pensar
Na verdade não há

(repetição)

Sou uma gota d’água
Sou um grão de areia
Você me diz que seus pais não te entendem
Mas você não entende seus pais

Essa estrofe diz que talvez toda essa ausência dos pais ou mesmo um relacionamento turbulento entre pais e filhos são condições que trazem enorme insegurança para ambos os lados. Nesse sentido, pais e filhos sente-se incompreendidos. Em uma relação ruim, os dois lados ficam em péssimo estado. Não há espaço para compreensão e muito menos flexibilidade.

Os primeiros dois versos são como os envolvidos se declaram mediante a relação “Sou uma gota d’água/Sou um grão de areia”. Sentem-se pequenos um em relação ao outro e julgam-se incapazes de solucionar suas divergências.

Em seguida, em meio a conversa com uma das partes (filhos), Renato incorpora o conselheiro e segue a música até o fim na mesma levada “Você me diz que seus pais não te entendem/Mas você não entende seus pais”.

Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser
Quando você crescer

“Se meus pais tivessem feito isso por mim, se tivessem feito aquilo, seria tudo diferente e melhor”, dizem os filhos sobre os pais. Costumeiramente atribuem seus traumas e fracassos a eles. Mas Renato considera isso um equívoco da parte dos filhos e nos leva a pensar que mesmo após adultos, sentimos medo, fazemos péssimas escolhas, erramos! Somos criança, não importa nossa idade ou se temos filhos. Por isso, ser compreensivo é essencial.

Aparentemente os conselhos do eu lírico não foram suficientes ou então só ocorreram postumamente, e nossa protagonista continuou a nutrir seus pensamentos suicidas até se jogar da janela do quinto andar.

Não querendo que essa tragédia se repita, essa é a história que nosso narrador resolveu nos contar. Para finalizar, Renato revela um ponto muito importante que talvez nós não refletimos ainda:

Seus pais “São crianças como você/O que você vai ser quando você crescer”.

Não, não é uma pergunta, como a maioria pensa. Trata-se de uma afirmação. Você vai ser como seus pais quando “crescer”: permanecerá sendo uma criança.

Giulia Salgado