Deixa a luz entrar

2018 traz consigo o 4° aniversário do fim da nossa amizade. É metade do tempo que fomos amigas. Uma amizade que para mim significou desde um cérebro teimoso para confrontar a um abraço amigo para mergulhar. A sua amizade significou muita coisa para mim…

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Pensando em nós foi que eu me dei conta: a amizade não vale quase nada depois que crescemos. É muito difícil fazer amigos depois dos 20 e tantos anos. Existe sempre uma sombra, um rastro de desconfiança, uma maldade implícita, algo de desencorajador ao redor dos amigos adultos. Para piorar, amizades exigem tempo, talvez mais do que estamos dispostos a admitir; exigem entrega, talvez mais do que estamos dispostos a dar; exigem a capacidade de lidar com maus momentos, talvez mais do que estamos dispostos a aturar.

Acho que o mais difícil nisso tudo é se doar com tanta inocência quanto antes. É quase impossível encontrar alguém que queira simplesmente “perder tempo” nos conhecendo um pouquinho mais. Existe uma exigência muito grande nas relações adultas de amizade e, é quase implícito, mas eu sinto que não podemos errar tanto. Deve ser porque as pessoas estão demasiadamente feridas ou ocupadas (eu ainda não sei direito), mas elas não se esforçam para aceitar as pessoas como elas são. Ou quando se “esforçam” precisam apontar os erros das pessoas pelas costas – ao invés de simplesmente se dirigir a elas.

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Eu percebo e me sinto agora contaminada por isso, como se fosse algo que eu venho aprendendo aos poucos e sem perceber: é simplesmente muito difícil virar-se para alguém e dizer coisas como: “Isso me magoa” ou “Não gosto quando você age assim comigo”. Por que não podemos mais ser honestos sem que isso cause um transtorno descomunal? Por que preferimos criticar as pessoas com quem nos relacionamos longe de seus olhos e ouvidos? Quando começamos a achar que amizade é sinônimo de sacrifício? Será que depois dos 20 e tantos anos sempre vamos achar que não recebemos de alguém tanto quanto merecemos? Será que sempre vamos achar que estamos esquecendo de dar alguma coisa?

Existe pouca verdade quando somos adultos e terminamos por nos acomodar muito com o que temos, como se fosse um presente grego divino. Não queremos perder, não queremos ganhar, não queremos ser honestos, mas também não queremos ser falsos. É uma espécie de meio-termo de tudo e coragem de nada. É por isso que eu comecei a pensar na nossa amizade que, embora findada, continua a me fazer pensar sobre quem eu fui, quem eu sou e quem eu gostaria de ser. Quem?

Sabe, ninguém desfruta do calor do verão sem sentir o frio do inverno. Se lançar ao vento é bom, mas sempre corremos o risco de cair na tempestade. Podemos continuar sendo corajosos agora que sabemos tudo isso? O que eu quero dizer é que não dá para descartar as coisas porque elas não cheiram mais como livros novos e pão de padaria. É inocente? Muito. Mas era isso mesmo que eu queria mergulhar no fundo da minha alma para resgatar.

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O fim da nossa amizade é hoje algo que não me orgulho e nem me envergonho. Simplesmente aconteceu. Acho que porque as pessoas mudam na sua própria essência, mudam em relação ao mundo, mudam em relação a nós. E é claro, isso nos choca, causa desconfortos, conflitos e rompimentos. Mas acho que, seja como for, sempre haverá espaço para novas pessoas e relações nas nossas vidas.

Acho – adoro esse verbo – que algumas coisas são irrecuperáveis em sua totalidade, mas eu tenho certo respeito, e até saudade do que tivemos. Foi bom, foi ruim, foi verdadeiro.

Talvez jamais poderemos ser tão inocentes, verdadeiros e puros como antes. Talvez sempre tentaremos nos levantar como alguém que esteve quatro anos imóvel em uma cadeira de rodas: passos desajeitados, lentos, imprecisos e desconfiados. Saindo de nosso casebre frio, cauteloso e negro em direção ao tímido raio de sol que a brecha da porta deixa escapar. Duas perguntas martelando em nossa mente enquanto os olhos se incomodam com a claridade que aos poucos começa a entrar:

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– Será que vamos cair novamente? Por que se preocupar?

Intimidade

Quando é que a gente finalmente cria intimidade com uma pessoa? Será que é quando a gente pode xingar o outro de cabeçudo, feioso, dentuço e orelhudo sem que isso cause mal-estar? Será que é quando você abraça a pessoa e aquilo soa como um gesto natural? Será que é quando você diz coisas íntimas como “eu gosto de cagar pela manhã” e a pessoa não acha isso tão bizarro (apesar de ser)?

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Fato é que eu estava com B. em um aconchegante café. Conversávamos sobre qualquer coisa que eu nem me lembro mais. A neve fina caía lá fora, como pedrinhas de sal que quicam no chão e depois desaparecem no asfalto. O grande vidro da sala era um convite para se deslumbrar com aquele cenário. O silêncio se impôs e ficamos ali, imóveis, vendo as pessoas caminharem e imaginando o barulho caótico das ambulâncias que passavam lá fora. No nosso ambiente, o silêncio reinava triunfante. Depois de cinco ou seis minutos, eu retomei a leitura do meu livro, enquanto B. agora sorria vendo qualquer coisa em seu laptop.

De repente pareceu-me que ficar à vontade com o silêncio do outro e não precisar dizer nada se você não tiver vontade é ter intimidade.

Quatro meses, solidão, final e recomeço

Eu caminhava distraída pela estação do metrô que vai dar no Cepsum e depois na residência universitária, onde moro. Naquele dia eu tive duas aulas – de três horas cada -, vi o filme recomendado pelo professor e passei na biblioteca para alugar alguns livros. À noite, eu planejava estudar e me exercitar no Cepsum. Nadar, correr ou andar de bicicleta? Nadar. Sauna ou jacuzzi depois? Sim, seria bom uma jacuzzi.  

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(…) Caminhei me sentindo o personagem de um filme que provavelmente seria nomeado como Sem olhar para trás. Um pouco mais na frente eu surpreendentemente cruzei com B., que mais ou menos vinha tomando aquele espaço não preenchido da minha vida. Falamos besteira, comemos, sorrimos, em suma, fizemos as coisas que eu mais adoro, ou seja: nada de importante ou relevante. E foi assim que em quatro meses o Canadá me deu um melhor amigo, um ex-melhor amigo, um traço de solidão, um fim e um recomeço. Canadá é vida!

 

A primeira vez a gente nunca esquece

O nervosismo, o frio na barriga, o corpo meio trêmulo. Como vai ser? Será que eu vou mandar bem? Fico me perguntado se todas as pessoas fazem da primeira vez algo tão teatral e dramático quanto eu. Fazem? Não sei.

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Eu estava particularmente animada naquele dia. A aula era sobre o filme Cidade Deus. E, cara, quem não ama esse filme? Quem não acha a história, o roteiro, os atores, a direção, a fotografia, o conjunto da obra, tudo, foda?

Veio aquele nervosismo quando a professora fez o resumo do filme para a turma. Ela, com aquele cérebro e sensibilidade que nada deixa escapar, com certeza tinha coisas interessantes a falar. Críticas duras? Elogios? O que viria?

– Se vocês um dia sentirem desejo de conhecer o cinema estrangeiro…

Eu na minha humilde mesa pensando que ninguém ali me conhece, justo na turma de 150 pessoas, e eu nunca fiz sequer uma amizade, eu nunca troquei mais do que duas ou três frases. Mesmo quando aconteceu de me perguntarem que horas eram ou sobre a proteção de tela do meu laptop, devem ter achado que eu era de algum país da América do Sul, mas não especificamente do Brasil. Alguém poderia falar mal do filme, dizer que se trata de uma caricatura da favela, da pobreza, do tráfico, do ser humano, enfim essas coisas que gringo adora falar! Alguém poderia mesmo comentar que não achou nada genial e eu estaria lá para ouvir e engolir em seco, remoendo um possível comentário negativo no interior do meu ser.

– Se vocês um dia sentirem desejo de conhecer o cinema estrangeiro, comecem pelo cinema brasileiro. – Disse a professora.

Ao menos a primeira parte já soava muito positiva e eu senti um grande orgulho e satisfação por ser brasileira. Então eu revi a programação da aula, que era falar sobre um único filme, ele, Cidade de Deus. Uma aula inteira – três horas, dedicada ao filme! Acho que foi a primeira vez que isso aconteceu (uma aula inteira dedicada a um único filme). A professora continuou:

– O cinema brasileiro tem uma estética muito própria. Em especial esse filme, que é único por muitas razões.

Então era isso, seriam três horas falando de um filme que a professora ama e acha genial. Horas falando das técnicas utilizadas, da não linearidade da narração, da contribuição dos atores para a história, da direção intuitiva de Fernando Meirelles e Kátia Lund, das metáforas, do ritmo do filme, da cultura brasileira, do samba, da favela, da violência, da criminalidade…

Eu criei coragem e levantei a mão para pedir a palavra:

– Bem, primeiro eu gostaria de dizer que eu sou brasileira…

E todas aquelas cabeças se viraram curiosas e ávidas por um comentário brilhante.

– Bem, primeiro eu gostaria de dizer que eu sou brasileira e, talvez por isso, eu tenha algumas informações que vocês não tem acesso. Principalmente em relação ao… – Porra, como se diz ‘contexto’ em francês? – contexte?

– Sim, é assim mesmo que se fala. – Disse a professora.

– Bem, continuando… A primeira cena, a da perseguição da galinha, trata-se de uma metáfora. É de se esperar que com a tradução se percam muitas informações importantes. Por exemplo, o nome do personagem Manu Tombeur (tradução para o nome de Mané Galinha) é uma péssima tradução, pois galinha (português) significa, ao pé da letra, la poule (francês). Então, quando Zé Pequeno e seu bando perseguem a galinha, isso é um paralelo com a real perseguição de Petit Zé (Zé Pequeno) a Manu Tombeur (Mané Galinha). É mesmo de se estranhar que a principal figura do tráfico tem uma reação um tanto desproporcional à fuga da galinha, não só indo ele próprio atrás da fugitiva, como mobilizando toda a sua gangue, com armas de fogo e disparando contra a pobre ave. Não por acaso, o filme começa por essa cena que apenas vai ter sua continuação lá pelo meio do filme, no ápice da narrativa, com a disputa final entre os dois arqui-inimigos.

– Bem, sem essa informação é impossível estabelecer esse vínculo entre a galinha e o personagem Mané Galinha. – Disse a professora se apressando em pegar um caderno e anotando as informações.

– Outra coisa: na cena que Alicate e Marreco estão na árvore escondidos na floresta…

– No quê?

– Dans la forêt?

– Ah, sim, na floresta!

– Sim! Vemos uma montagem dentro de um plano onde aparece um peixe pequeno nadando e depois um peixe grande o come. Então, existe uma expressão muito utilizada no brasil: Fulano é peixe grande. Quando dizemos que alguém é peixe grande estamos falando que fulano é alguém que exerce grande poder e influência dentro de uma hierarquia. Logo, acho que a cena de alguma forma faz uma alusão a isso. Talvez é por isso que Alicate decide voltar para a igreja e desiste de ser um criminoso. De alguma forma ele percebe que é um “peixe pequeno” nessa estrutura cheia de peixes maiores prontos para devorá-lo. – Na verdade disse comê-lo, porque eu não sabia como dizer devorá-lo em francês.

– Muito obrigada pela contribuição. – Disse a professora, depois fez mais algumas anotações e continuou a aula.

Se fazia sentido o que eu disse ou não, não sei. Aquela era apenas a minha interpretação dos fatos e fiquei feliz de compartilhá-la. Já estava me sentindo a bam-bam-bam, quando a professora pausou o filme e me perguntou o nome de um samba que estava tocando na cena final. Foi o me senti mais ou menos como um farol na sala de aula, alguém pronto para explicar qualquer coisa que não fosse bem compreendida (não que isso seja positivo).

– Bem, não sei realmente. É um samba muito antigo… Mas acho, em relação à cena, que finalmente Buscapé está fora de perigo. Pela primeira vez ele não está entre o fogo cruzado, pelo contrário, ele vai no caminho oposto ao do Bando da Caixa Baixa, nem chega a cruzar com os moleques. Talvez isso signifique que na favela só existem dois caminhos a seguir: superar a criminalidade ou ceder a ela. Buscapé a supera, pois é um verdadeiro artista, um fotógrafo. Já os meninos cedem a ela, pois não tem perspectivas melhores de vida.

E assim eu finalizei a minha primeira – e provavelmente última – participação em sala de aula.

 

Talvez eu não o ame tanto assim

Com ele eu senti verdadeiras emoções: eu sorri – de alegria e de tristeza, eu chorei – de alegria de tristeza, eu refleti, eu saí da caixinha, eu quis ir mais longe – eu fui (eu acho).

Triste

Agora estou aqui, em frente a um computador, nesta doce e bela manhã de março, onde pássaros cantam sobre as árvores e esquilos sapecas circulam de um lado para o outro da colina. Eu poderia estar contemplando esse momento e refletindo sobre o quanto a vida é bela, não? Ao invés disso, reduzo todo esse momento a uma simples angústia e me pergunto enfaticamente se É isso mesmo que eu quero?

Afinal, devo insistir nessa ideia e levar essa coisa de estudar Cinema adiante? Essa coisa, olha só como tenho me referido ao que ontem parecia uma grande paixão e hoje não representa muito mais que um desencanto. Cadê o carinho? Onde está o contentamento, a satisfação, a alegria de dizer eu estudo e amo o Cinema?

Sinto-me como se tivesse convidado alguém para morar na minha casa e, de repente, Eca, essa pessoa tem chulé e deixa as roupas intimas no banheiro, que merda!

E tem sido assim: quando eu não quero morrer, eu quero matar o Cinema.

Não que eu não ame mais parar diante de uma tela, com pipoca e refrigerante, para assistir um bom filme. Pelo contrário, essa é realmente uma das poucas coisas que me deixa relaxada ultimamente. Mas, sabe, na faculdade, pausando o filme a cada três segundos para falar de um procedimento que, se não fosse a professora indicar, eu jamais teria notado… Sabe, fazer uma análise crítica… Sabe, ver pessoas falando da genialidade de filmes que eu não vejo nada demais… Sabe, me dar conta de que eu estou tão distante de toda essa atmosfera, que eu ainda não entendi direito a diferença entre montagem paralela e montagem alternada…

Isso tudo é, sem mais delongas, broxante demais! Quer saber? Eu acho mesmo que deveria ter ficado mais triste com o resultado da minha última análise, um “c”, mas lá estava eu, adicionando olhos, boca, nariz e língua naquela nota, transformando o motivo da minha decepção em um emoticon debochado.

Mas pouco importa isso tudo, eu decidi que eu vou continuar. Eu vou até dezembro com essa história de estudar Cinema. Parece-me de repente um daqueles casos de amor e ódio. Sabe quando tudo o que você quer é uma pessoa, mas ela não te da bola, então você começa a odiá-la, mas no fundo você a ama e só prefere odiá-la porque isso torna a situação menos humilhante?

Ufa, é isso!

Só espero que esse equívoco me dê algumas boas ideias para escrever meus textos, que pelo menos me torne um pouco mais criativa, um pouco mais sensível. Pois de alguma forma, até que fico entusiasmada com a ideia de utilizar as técnicas do Cinema em um dos meus textos, tipo algo bem experimental mesmo! Já pensou que louco seria escrever uma história com o mesmo princípio  utilizado em montagem paralela?

– Ou seria montagem alternada? Não sei ainda…

Saudade de encher a cara sem culpa

Não, eu não estava brincando quando disse no último textão que meu próximo textão teria esse título. Tudo começou no inicio desta semana confusa e fria de março, quando eu recebi as notas das provas e descobri da pior maneira possível que não é fácil estudar cinema em francês, pois:

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Um: é um curso teórico demais, tem que ler muito, escrever muito, assistir muito, analisar muito. Tudo isso elevado ao quadrado.

Dois: eu nunca liguei para as técnicas utilizadas no cinema. Nunca quase tive um orgasmo após me deparar com um plano, quadro ou paleta de cores de um filme. Como aspirante a escritora, sempre estive mais entretida com os diálogos, o desenrolar da trama e a complexidade da fala de cada personagem.

Três: não saber falar/entender/escrever francês direito e partir para um curso trop teórico é como entrar em uma batalha perdida, mas essa parte chata vocês já sabem…

Fato é que eu queria sofrer em paz. Sabe aqueles dias que você quer deitar na cama em posição fetal e passar um dia inteiro lá? Pois é, foi exatamente o que eu (infelizmente) fiz. De noite, bateu aquela depressão que eu só queria afastar o mais rápido possível, mas foi justamente aqui que o verdadeiro sofrimento se acoplou ao meu ser.

Sofrimento. No Canadá esse deve ser um sentimento comum a estrangeiros sul americanos, talvez até mesmo para os próprios canadenses. Grande parte dos jovens sofrem sem muito poder fazer para apaziguar um pouco sua dor. Eu só me dei conta disso quando me veio a vontade de encher a cara para afogar as mágoas, afinal, notas entre 4 e 7 sobre 10 não são nada fáceis de digerir.

Sem dúvida foi isso que me desanimou mais nesta semana, até porque estudei bastante (algo raro). Mas tudo bem… pelo menos eu posso me enganar dizendo ao meu coração que eu sou boa e que na verdade foi a professora que não entendeu o que eu quis dizer porque meu francês é tao ruim quanto impreciso.

Seja como for, isso começou a me dar uma raiva… Ora, já na idade avançada de 26 anos e preocupada com notinhas da faculdade, francamente! Quer dizer, eu tenho coisas mais importantes para me preocupar, não? Comecei logo a pegar os boletos que tenho para pagar, a pensar nas minhas próximas crises existenciais e a hipoteticar sobre os filhos e o casamento que ainda não tenho.

Mas a pior parte disso tudo é que nada adiantou… Por que, meu Deus, a gente quer ser alguém nessa vida? Por quê?! Se contenta de uma vez, meu filho, que ninguém vai construir um Taj Mahal para você! Isso é coisa do século 17, criatura, quando não existia televisão, Coca-cola e essas coisas que estragam o ser humano!

Pausa para acalmar os ânimos.

Hã-ham. Pois bem, como eu estava dizendo, eu queria sair para afogar as mágoas me deleitando pouco a pouco sobre um alquinho. Beber para esquecer. Quem nunca, né? Acontece que aqui no Canadá não dá para simplesmente ir ao bar e se divertir sem culpa por algumas razões. Lá vai:

Razão 1: aqui álcool sai mais caro do que ir no seu restaurante predileto – aquele que você poupa o mês inteiro para ir quando tem um dia difícil. Sério, onde já se viu um copinho americano de cerveja aguada custar R$15 temers? O bom é que se não fizer a conversão mental de dólar canadense para real você pode se enganar até a chegada da fatura. A sensação que eu tenho é que o governo canadense carimbou o imposto no álcool sem dó nem piedade. É como se eles dissessem: “Ah, então você quer gastar o seu dinheiro com o que não presta? Pois bem, a gente vai meter nas bebidas alcoólicas os impostos da saúde, da educação, do saneamento, dos refugiados e até da publicidade para queimar a imagem do presidente Trump”. E agora eu estou convencida que no preço da cerveja está embutida até mesmo a doação para o Criança Esperança!

Razão 2: você não pode encher a cara sem pensar que o certo seria estar estudando, ou fazendo os trabalhos que devem ser entregues no final do semestre, ou babando os professores, ou arrancando os próprios cabelos porque pelas contas não tem mais jeito de você passar nas matérias nem que volte no tempo e evite a Segunda Guerra Mundial.

Razão 3: é muito difícil encontrar alguém com paciência para escutar seu francês de tuberculoso, ainda mais porque depois de umas doses você fica sem filtro, falar tudo errado mesmo e que se dane o destino da humanidade. E cara, não tem coisa mais chata do que encher a cara sozinho em um bar lotado de estranhos. Acaba acontecendo de toda hora vir algum carinha sem criatividade para tentar puxar a mesma conversinha de sempre, na qual ele se esforça para demonstrar indiretamente o quanto é dotado (em todos os sentidos) e que (biologicamente) seria o candidato perfeito para fazer filhos saudáveis e bonitos.

Parênteses: eu sei que eu fico parecendo uma alcoólatra dizendo essas coisas, mas vocês não precisam se preocupar comigo. Podem já ir indo remoer os boletos e crises existenciais de vocês! Está tudo bem. Mesmo. Toda essa reação um pouco exagerada é porque eu estou em outro país e eu tenho 26 anos, entende? Essa porra deveria ser crazy! Então imagina a minha frustração (e angústia!) ao perceber que estou prestes a ter uma barriga chapada. Cara, quem chega aos 26 anos sem barriguinha de chop e historias de bêbado para contar? Só aqueles que não aproveitam a vida, não é mesmo?

Enfim, essas três razões – exatamente nessa ordem – limitam a alegria de viver nesse fantástico e controverso país que é o Canada.

Em pensar que no Brasil você só não bebe muito porque cu de bêbado não tem dono…

Perdida na aula e talvez no mundo

Eu gosto do curso Langage et matière de l’expression. Essa matéria que possui nome grande e hostil, mas na verdade é bem interessante. Trata-se nada mais, nada menos do que falar sobre composição de imagem e procedimentos técnicos utilizados no cinema. É um curso que exige atenção (que eu não tenho), talento (que eu acho que não tenho) e sensibilidade (que talvez eu tenha, depende do dia).

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Talvez você esteja pensando: Mas quem é essa garota que produziu este imenso texto que estou prestes a gastar meu valioso tempo lendo? Ah sim, a menina que partiu rumo ao Canada, país gélido, para fazer um intercâmbio durante um ano. Que sorte e que vida boa ela tem! Vai ter um futuro brilhante, com certeza!”

Pois bem, aqui estou para arrancar as gramas verdes e frescas do meu quintal.

Neste curso repleto de alunos geniais, prontos para dar uma resposta a qualquer questão colocada pela professora, eu… Bem, eu não consigo nem falar francês direito. As vezes parece ridículo eu estar aqui, estudando nessa universidade imensa, a Université de Montréal, com alunos do mundo todo. A impressão que eu tenho é que somente eu não me encaixo e não sei direito o que fazer. É fácil se deixar levar por esse pensamento e seguir um caminho quase sempre solitário, afinal, nessa grande sala quase ninguém se conhece, é cada um no seu pequeno cubículo.

Com um número de cadeiras das quais eu nunca consegui contar sem ter que recontar e perceber que o resultado saiu diferente, a sala é registrada no Moodle como plenamente cheia, ou seja: 150 alunos. Não me resta outra alternativa a não ser todo dia refletir sobre quem é o estranho (a) sentado (a) ao meu lado. Hoje mesmo já começo a me perguntar quem é a garota de cabelo azul e como pode eu nunca tê-la notado, ainda que seus cabelos tenham um tom de azul-turquesa. Sentado a minha direita, quem seria o garoto de boné e camisa quadriculada que não desgruda os olhos do celular?

Olho então para o palanque, vejo uma mulher no auge dos seus quarenta e poucos anos. Ela tem olhos agitados e pele bronzeada (como pode uma coisa dessas nesse frio congelante?). Fico me perguntando se ela fez bronzeamento artificial, mas logo chego a conclusão que não. Uma mulher com mais de 5 centímetro de raiz branca nos cabelos não deve ser vaidosa a esse ponto. Ela é bonita, mesmo que seus cabelos metade brancos, metade castanhos incomodem um pouco. Ela é também inteligente, sensível e bem-humorada. Apesar de ser casada, não esconde suas fantasias com o ator Ryan Gosling. Quem nunca, né? Até homens têm fantasias com o Sr. Gosling, estou certa. Eu sei que ela tem filhos, pois uma vez cancelou uma aula (algo raríssimo por aqui) por causa deles. Deve ser uma boa mãe, dessas que lê para seus bebês antes de dormir, ainda que o tempo seja algo escasso para ela. A professora C. está sempre vestida de maneira simples, geralmente com uma blusa estampada, calça jeans e bota preta com salto discreto. É definitivamente uma simplicidade elegante e agradável aos olhos, eu particularmente aprecio bastante. Mas sua aparência é a coisa menos interessante sobre ela, pois o que mais gosto é sentir a sua paixão pelo cinema. Ela deve ser uma dessas pessoas que encontrou seu lugar no mundo antes dos 20 anos de idade. Talvez eu pense isso porque ela preserva um ar meio obstinado, de quem não perde tempo e está exatamente onde planejava. Eu admiro isso, queria ser assim! Mas também é verdade que não sei até que ponto eu estou certa. Pode ser que eu tenha apenas uma imaginação fértil e positiva – principalmente em relação a vida do outro.

O que mais me incomoda nessa história toda de intercâmbio é o fato de eu nem sempre entender o francês. A merda maior é que as vezes eu entendo uma frase em seu sentido completamente contrário. A culpa dessa maldição é a semelhança entre as conjunções nas duas línguas. Algumas palavras em francês são muito parecidas com as utilizadas em português, mas o sentido é justamente o oposto. Por exemplo, em português portanto é uma conjunção conclusiva. Já em francês pourtant é uma conjunção adversativa. Até eu pensar que o pourtant não é portanto, a professora já concluiu uma ideia que eu pensei que era outra. Até eu perceber que eu pensei errado e voltar para corrigir o erro, a professora já falou milhões de coisas que eu deixei escapar. E por mais que eu faça gravações das aulas que eu nunca vou ouvir, eu não consigo aceitar que isso me aconteça sem me revoltar com a vida.

O que eu estou fazendo estudando cinema em francês? Caramba, parece uma piada. Se alguém me dissesse isso há uns cinco anos atrás eu iria rir muito, mas hoje eu vou me contentar mesmo é com as lágrimas (snif, snif). Até esse maldito momento eu não queria admitir que eu não entendo nada de cinema e de francês. Que merda fedida cara! Pior ainda é admitir que eu não sou tão brilhante como esses outros alunos que tem uma resposta na ponta língua para tudo. Quem são? De onde vem? Para onde vão? Tem como me levar junto?

Tudo que eu sei é que eles (os outros alunos) não gostam muito de pessoas que não sabem o que querem, ou seja, de gente como eu. Outro dia, por exemplo, eu peguei uma imagem qualquer na internet para colocar na tela do meu laptop, só precisava ser escura porque frequentemente os professores desligam as luzes para mostrar trechos de filmes e se a imagem da tela for clara o laptop fica parecendo um neon brega e incômodo no meio da sala. Um garoto sentado ao meu lado perguntou se eu gostava do jogo apontando para a tela do computar. Primeiro: franceses falam tão rápido que eu tive que pedir para ele repetir a pergunta três vezes. Segundo: é a imagem de um jogo? Eu nem sabia!

– Ah, eu peguei qualquer imagem na internet. – Disse eu.

Ele me olhou com os olhos cerrados, não sei se porque não tinha entendido meu francês de tuberculoso ou se porque achou tudo aquilo meio idiota. Aquilo meu deu um pouco de raiva, fiquei com vontade de dizer: Mano, vai cagar e me deixa em paz seu nerd desgraçado. Ainda bem que eu não falei, teria me arrependido profundamente três milésimos depois.

Eu acho – mentira, eu tenho é certeza! – que já estou meio revoltada a essa altura. Afinal, já se passaram quatro meses e eu ainda não entendo/falo francês direito e essas matérias de cinema para mim são pior do que escutar música em grego. Eu cheguei no ponto de detestar as piadas dos professores só porque todo mundo sorri e eu fico com uma cara de cega perdida em tiroteio. Essa aula particularmente me faz remoer muito isso, porque a professora faz uma piada a cada dez minutos. Eu acho isso um absurdo! Quer dizer, não é um show de stand up comedy, é?

Um pouco dramático? Com certeza! Mas eu sou escritora, foda-se se eu não tenho um livro publicado. Então decidi que vou passar por esse período sofrido, mas não sem escrever meus textões, remoer um pouco essa árdua aventura e planejar como vou me livrar desse sofrimento.

Para fugir da realidade, as vezes pesquiso a vida dos escritores de livros que li. A maioria é um bando de nerd – estou cercada! – que publicou seu primeiro livro com 12 anos de idade. Fala serio, eu já tenho 26! Mas hoje pesquisei sobre David Nicholls, autor do romance One Day, e descobri que ele publicou seu primeiro livro depois dos 30. Isso me deu um pouco de esperança: É, talvez eu ainda tenha jeito.

O jeito que encontrei nesse momento é precisamente ficar escrevendo esses desabafos durante a aula. O som desenfreado dos dedos batendo no teclado chama atenção dos meus colegas e da professora, afinal eu não escrevo um texto, eu publico livros com oitocentas páginas.

Seja como for, ora ou outra percebo um olhar curioso sobre mim, a professora C. ja deve ter percebido que estou escrevendo qualquer merda ao invés de prestar atenção na aula e tomar notas importantes: Aquela distraída não é a garota que acertou somente 20% do exame?. Os outros alunos que observam, se é que eles observam, devem pensar: Essa garota nunca fala na sala de aula, então o que será que ela tanto escreve?

Não acho que eles realmente pensam isso, mas mesmo assim sorri só de pensar na possibilidade, pois afinal não sabem eles as minhas angustias, não sei eu as suas…